Moishe Postone


Anti-semitismo e nacional-socialismo [*]
Moishe Postone

Qual a relação do anti-semitismo com o nacional-socialismo? A discussão pública deste problema na República Federal [Alemã] tem sido caracterizada por uma dicotomia entre liberais e conservadores, por um lado, e a Esquerda, por outro. Os liberais e os conservadores tendem a realçar a descontinuidade entre o passado Nazi e o presente. Ao referir-se a esse passado eles têm focado a sua atenção na perseguição e extermínio dos judeus e tendem a diminuir a importância [deemphasize] de outros aspectos centrais do Nazismo. Ao sublinhar o carácter de uma suposta ruptura total entre o Terceiro Reich e a República Federal, este tipo de ênfase no anti-semitismo tem ajudado, paradoxalmente, a evitar uma confrontação fundamental com a realidade social e estrutural do nacional-socialismo. Essa realidade não desapareceu certamente por completo em 1945. A condenação do anti-semitismo Nazi, por outras palavras, tem servido também como uma ideologia de legitimação do presente sistema. Esta instrumentalização apenas foi possível porque o anti-semitismo tem sido tratado primariamente como uma forma de preconceito [prejudice], enquanto ideologia de um “bode expiatório” [scapegoat ideology], ofuscando assim a relação intrínseca entre o anti-semitismo e os outros aspectos do nacional-socialismo.

Por outro lado, a Esquerda tende a concentrar-se na função do nacional-socialismo para o capitalismo, realçando a destruição das organizações operárias [working-class], as políticas económicas e sociais Nazis, o rearmamento, o expansionismo e os mecanismos burocráticos da dominação do partido e do Estado. Os elementos de continuidade entre o Terceiro Reich e a República Federal têm sido salientados. O extermínio dos judeus não tem sido, é claro, ignorado. Todavia, foi rapidamente subordinado [subsumed under] às categorias gerais de preconceito, discriminação e perseguição. Ao entender o anti-semitismo como um momento periférico, ao invés de central, do nacional-socialismo, a Esquerda ofuscou também a relação intrínseca entre os dois.

Ambas as posições entendem o anti-semitismo moderno como um preconceito anti-judaico, como um exemplo particular do racismo em geral. A sua ênfase na natureza psicológica de massas [mass psychological] do anti-semitismo separa as considerações sobre o Holocausto das investigações socioeconómicas e sócio-históricas do nacional-socialismo. O Holocausto, contudo, não pode ser compreendido enquanto o anti-semitismo for visto como um exemplo do racismo em geral e enquanto o Nazismo for concebido apenas em termos do grande capital e de um estado burocrático policial e terrorista. Auschwitz, Belzec, Chelmno, Maidanek, Sobibor e Treblinka não devem ser tratados fora do contexto [framework] de uma análise do nacional-socialismo. Eles representam um dos seus fins lógicos, e não apenas o seu mais terrível epifenómeno. Nenhuma análise do nacional-socialismo que não seja capaz de explicar o extermínio dos Judeus Europeus pode ser considerada completamente adequada. 

Neste ensaio vou tentar acercar-me de uma explicação para o extermínio dos Judeus Europeus através da exposição de uma interpretação do anti-semitismo moderno. A minha intenção não é explicar porque é que o Nazismo e o anti-semitismo moderno sofreram um desenvolvimento notável [achieved a breakthrough] e se tornaram hegemónicos na Alemanha. Uma tal tentativa implicaria uma análise da especificidade do desenvolvimento histórico Alemão, um assunto sobre o qual muita coisa já foi escrita. Este ensaio procura, antes, determinar mais rigorosamente aquilo que se desenvolveu [achieved a breakthrough], ao sugerir uma análise do anti-semitismo moderno que salienta a sua ligação intrínseca ao Nacional-socialismo. Esta aferição é uma pré-condição necessária para qualquer análise substantiva das razões para o sucesso do nacional-socialismo na Alemanha.

O primeiro passo deve consistir numa especificação do Holocausto e do anti-semitismo moderno. O problema não deve ser colocado quantitativamente, quer em termos do número de pessoas assassinadas ou do grau do sofrimento infligido. Existem muitos exemplos históricos de assassínio de massas e de genocídio (por exemplo, foram mortos muitos mais russos do que judeus pelos Nazis). A questão é, ao invés, uma de especificidade qualitativa. Aspectos particulares do extermínio dos Judeus Europeus pelos Nazis permanecem inexplicáveis enquanto o anti-semitismo for tratado como o exemplo específico de uma estratégia de “bode expiatório”, cujas vítimas poderiam muito bem ter sido membros de um qualquer outro grupo.

O Holocausto foi caracterizado por um sentido de missão ideológica, por uma relativa ausência de emoção e ódio imediatos (ao contrário dos pogroms, por exemplo) e, mais importante, por uma aparente ausência de funcionalidade. O extermínio dos Judeus não parece ter sido um meio para qualquer fim. Eles não foram exterminados por razões militares ou no decurso de um processo violento de aquisição de território (como foi o caso com os Índios Americanos e os Tasmanianos). Nem a política [policy] Nazi relativamente aos Judeus se assemelhou à sua política relativamente aos Polacos e aos Russos, que procurou erradicar aqueles segmentos da população cuja resistência se poderia cristalizar, de modo a explorar a restante população mais facilmente como hilotas. Com efeito, os Judeus não foram exterminados devido a qualquer objectivo manifesto “extrínseco”. O extermínio dos Judeus deveria ter sido não apenas total, como constituía o seu próprio objectivo – o extermínio pelo extermínio – um objectivo que adquiriu prioridade absoluta.

Nenhuma explicação funcionalista do Holocausto e nenhuma teoria do anti-semitismo como bode expiatório pode sequer começar a explicar o porquê de, nos últimos anos da guerra, quando as forças Alemãs estavam a ser esmagadas pelo Exército Vermelho, uma proporção significativa de veículos ter sido desviada do apoio logístico e utilizada para transportar os Judeus para as câmaras de gás. Uma vez reconhecida a especificidade qualitativa do extermínio dos Judeus Europeus, torna-se claro que as tentativas de explicação ligadas ao capitalismo, ao racismo, à burocracia, à repressão sexual ou à personalidade autoritária permanecem num nível demasiado geral. A especificidade do Holocausto requer uma mediação muito mais determinada de forma a aproximarmo-nos do seu entendimento.

O extermínio dos Judeus Europeus está, como é óbvio, relacionado com o anti-semitismo. A especificidade do primeiro deve ser relacionada com a do segundo. Para além disso, o anti-semitismo moderno deve ser entendido com referência ao Nazismo enquanto um movimento – um movimento que, em termos da sua própria auto-compreensão, representou uma revolta.

O anti-semitismo moderno, que não deve ser confundido com um preconceito anti-judaico quotidiano, é uma ideologia, uma forma de pensamento, que emergiu na Europa no final do século XIX. O seu surgimento pressupôs formas anteriores de anti-semitismo, as quais tinham sido uma parte integrante da civilização Cristã Ocidental durante séculos. Aquilo que é comum a todas as formas de anti-semitismo é o grau de poder atribuído aos Judeus: o poder para matar Deus, para desencadear a Peste Bubónica e, mais recentemente, para introduzir o capitalismo e o socialismo. O pensamento anti-semita é fortemente maniqueísta, com os Judeus a desempenharem o papel de filhos das trevas.

É não apenas o grau, mas também a qualidade do poder atribuído aos Judeus que distingue o anti-semitismo de outras formas de racismo. Provavelmente, todas as formas de racismo atribuem um poder potencial ao Outro. Este poder, contudo, é usualmente concreto, material ou sexual. É o potencial do oprimido (enquanto reprimido), dos “Untermenschen” (“sub-humanos”). O poder atribuído aos Judeus é muito maior e é percebido como real [actual] ao invés de potencial. Para além do mais, é um tipo diferente de poder, um não necessariamente concreto. O que caracteriza o poder imputado aos Judeus no anti-semitismo moderno é o facto de ser misteriosamente intangível, abstracto e universal. É considerado como uma forma de poder que não se manifesta directamente, mas deve encontrar outro modo de expressão. Procura um suporte concreto - politico, social ou cultural - mediante o qual possa funcionar. Em virtude do poder dos Judeus, tal como é concebido pela imaginação anti-semita moderna, não estar limitado [bound] concretamente, “enraizado” [rooted], é presumido como sendo de uma imensidão desconcertante e extremamente difícil de contrariar. Considera-se que está por detrás dos fenómenos, mas não é idêntico aos mesmos. A sua fonte é portanto considerada oculta – conspiratória. Os Judeus representam uma conspiração internacional extremamente poderosa e intangível.

Um exemplo gráfico desta visão é providenciado por um poster Nazi que ilustra a Alemanha – representada como um trabalhador forte e honesto – ameaçada a Oeste por um John Bull [NT1] gordo e plutocrata, e a Leste por um Comissário Bolchevique brutal e bárbaro. Todavia, estas duas forças hostis são meros fantoches. Elevando-se acima do globo, e a manietá-los, está o Judeu. Esta visão não era de forma alguma um monopólio dos Nazis. É característica do anti-semitismo moderno que os Judeus sejam considerados a força que se esconde por detrás dos antagonistas “aparentes”: o capitalismo plutocrata e o socialismo. O “Judaísmo Internacional” é, para além disso, percebido como estando centrado nas “selvas de asfalto” das megalópoles urbanas emergentes, por detrás da “cultura moderna, vulgar e materialista” e, em geral, de todas as forças que contribuem para o declínio dos grupos sociais, valores e instituições tradicionais. Os Judeus representam uma força estrangeira [foreign], perigosa e destrutiva que mina a “saúde” social da nação. O anti-semitismo moderno, portanto, é caracterizado não apenas pelo seu conteúdo secular, mas também pelo seu carácter sistemático. A sua pretensão é a de explicar o mundo – um mundo que se tornou rapidamente demasiado complexo e ameaçador para muitas pessoas.  

Esta determinação descritiva do anti-semitismo moderno, embora necessária para diferenciar essa forma do preconceito ou racismo em geral, não é suficiente em si mesma para indicar a ligação intrínseca ao nacional-socialismo. Ou seja, o objectivo de ultrapassar a separação habitual entre uma análise sócio-histórica do Nazismo e um exame do anti-semitismo ainda não está, a este nível, cumprido. Ainda é requerida uma explicação que possa mediar ambas. Essa explicação deve ser capaz de fundamentar historicamente a forma de anti-semitismo descrita anteriormente através das mesmas categorias que poderiam ser utilizadas para explicar o nacional-socialismo. A minha intenção não é negar as explicações socio-psicológicas ou psicanalíticas, mas antes elucidar um quadro de referência histórico-epistemológico dentro do qual possam ser efectuadas especificações psicológicas mais aprofundadas. Esse quadro de referência deve ser capaz de elucidar o conteúdo específico do anti-semitismo moderno e ser histórico, isto é, deve contribuir para um entendimento de porque é que essa ideologia se tornou tão prevalecente num dado momento, desde o final do século XIX. Na ausência de tal quadro de referência, todas as outras tentativas explicativas que se centram numa dimensão subjectiva permanecem historicamente indeterminadas. O que é necessário, portanto, é uma explicação em termos de uma epistemologia sócio-histórica.

O desenvolvimento completo da problemática do anti-semitismo extravasaria os limites deste ensaio. Deve ser realçado, contudo, que uma análise cuidadosa da visão de mundo [worldview] proposta pelo anti-semitismo moderno revela que se trata de uma forma de pensamento na qual o rápido desenvolvimento do capitalismo industrial, com todas as suas ramificações sociais, é personificado e identificado com o Judeu. Os Judeus já não são considerados meramente os possuidores do dinheiro, como sucedia no anti-semitismo tradicional, mas antes responsabilizados pelas crises económicas e identificados com o espectro de reestruturação e desarticulação sociais resultantes de uma rápida industrialização: urbanização explosiva, declínio das classes e estratos sociais tradicionais, surgimento de um grande proletariado industrial cada vez mais organizado, e assim por diante. Por outras palavras, a dominação abstracta do capital, a qual – particularmente com a rápida industrialização – apanhou as pessoas numa rede de forças dinâmicas que não podiam compreender, passou a ser percebida como o domínio do Judaísmo Internacional.

Isto, todavia, não corresponde a mais do que uma primeira abordagem. A personificação foi descrita, mas não ainda explicada. Já existiram muitas tentativas de explicação mas nenhuma delas, em minha opinião, se revelou completa. O problema com essas teorias, tais como a de Max Horkheimer, que se concentram na identificação dos Judeus com o dinheiro e a esfera da circulação, é que elas não conseguem explicar a noção de que os Judeus também constituem o poder por trás da social-democracia e do comunismo. À primeira vista, outras teorias, tais como a de George L. Mosse, que interpretam o anti-semitismo moderno como uma revolta contra a modernidade, parecem mais satisfatórias. Tanto a plutocracia como os movimentos operários foram concomitantes da modernidade, da massiva reestruturação social resultante da industrialização capitalista. O problema com estas abordagens, contudo, é que o “moderno” teria de incluir certamente o capital industrial. Ora, como é sabido, o capital industrial nunca foi um objecto dos ataques anti-semitas, mesmo num período de rápida industrialização. Para além do mais, a atitude do nacional-socialismo relativamente a muitas outras dimensões da modernidade, especialmente no que se refere à tecnologia moderna, foi afirmativa ao invés de crítica. Os aspectos da vida moderna que foram rejeitados e aqueles que foram afirmados pelos nacional-socialistas formam um padrão. Esse padrão deve ser intrínseco a uma adequada conceptualização do problema. Dado que esse padrão não era exclusivo do nacional-socialismo, a problemática possui um significado de longo alcance.

A afirmação do capital industrial por parte do anti-semitismo moderno indica a necessidade de uma abordagem que consiga distinguir entre aquilo que o capitalismo moderno realmente é e a forma como se manifesta, entre a sua essência e a sua aparência. O termo “moderno” não possui em si mesmo uma diferenciação intrínseca que permita tal distinção. Gostaria de sugerir que as categorias sociais desenvolvidas por Marx na sua crítica da maturidade, tais como “mercadoria” e “capital”, são mais adequadas, na medida em que um conjunto de distinções entre aquilo que é e aquilo que parece ser são intrínsecas a essas mesmas categorias. Estas categorias podem servir como ponto de partida para uma análise capaz de diferenciar as várias percepções do “moderno”. Essa abordagem tentaria relacionar o padrão da crítica social e a afirmação que estamos a considerar com características das próprias relações sociais capitalistas.

Estas considerações conduzem-nos ao conceito Marxiano de fetiche, cuja intenção estratégica era providenciar uma teoria social e histórica do conhecimento alicerçada na diferença entre a essência das relações sociais capitalistas e as suas formas manifestas. Subjacente ao conceito de fetiche está a análise Marxiana da mercadoria, do dinheiro e do capital, não enquanto meras categorias económicas, mas antes como formas das relações sociais peculiares que caracterizam essencialmente o capitalismo. Na sua análise, as formas capitalistas das relações sociais não aparecem como tal, mas expressam-se apenas numa forma objectivada. O trabalho [labor], no capitalismo, não é apenas uma actividade produtiva social (“trabalho concreto”), mas actua igualmente, no lugar de relações sociais abertas, como mediação social (“trabalho abstracto”). Assim, o seu produto, a mercadoria, não é meramente um produto no qual está objectivado trabalho concreto; é também uma forma de relações sociais objectivadas. No capitalismo, o produto não é um objecto mediado socialmente por formas transparentes de relações sociais e de dominação. A mercadoria, enquanto objectivação de ambas as dimensões do trabalho no capitalismo, é a sua própria mediação social. Possui, portanto, um “duplo carácter”: valor de uso e valor. Enquanto objecto, a mercadoria expressa e ao mesmo tempo oculta relações sociais que não possuem qualquer outro modo “independente” de expressão. Este modo de objectivação das relações sociais constitui a sua alienação. As relações sociais fundamentais do capitalismo adquirem uma vida própria quasi-objectiva. Elas constituem uma “segunda natureza”, um sistema de dominação e compulsão abstractas que, embora social, é impessoal e “objectivo”. Estas relações não parecem ser sociais de todo, mas naturais. Ao mesmo tempo, as formas categoriais expressam uma concepção particular, socialmente constituída, da natureza em termos de um comportamento objectivo, regrado [lawful] e quantificável de uma essência qualitativamente homogénea. As categorias Marxianas expressam simultaneamente relações sociais particulares e formas de pensamento. A noção de fetiche refere-se a formas de pensamento baseadas em percepções que permanecem presas às formas de aparência das relações sociais capitalistas.

Quando se examina as características específicas do poder atribuído aos Judeus pelo anti-semitismo moderno – abstracção, intangibilidade, universalidade, mobilidade – é impressionante que as mesmas sejam todas características da dimensão de valor das formas sociais analisada por Marx. Aliás, esta dimensão, tal como o suposto poder dos Judeus, não aparece como tal, mas sempre na forma de um veículo [carrier] material, a mercadoria.

Chegados aqui, gostaria de começar por uma análise breve da maneira como as relações sociais capitalistas se apresentam. Vou portanto tentar explicar a personificação descrita acima e clarificar o porquê de o anti-semitismo moderno, que se opôs a tantos aspectos da “modernidade”, ser manifestamente omisso, ou até optimista, no que se refere ao capital industrial e à tecnologia moderna.

Vou começar com um exemplo da forma-mercadoria. A tensão dialéctica entre valor e valor de uso no interior da forma-mercadoria requer que este “duplo carácter” seja exteriorizado materialmente. Assim, aparece “duplicado” enquanto dinheiro (a forma manifesta do valor) e enquanto mercadoria (a forma manifesta do valor de uso). Embora a mercadoria seja uma forma social que expressa tanto o valor como o valor de uso, o efeito desta exteriorização é que a mercadoria aparece apenas como a sua dimensão de valor de uso, como algo puramente material e “corpóreo” [“thingly”]. O dinheiro, por outro lado, aparece como o único repositório do valor, como a manifestação do puramente abstracto, e não como a forma manifesta exteriorizada da dimensão de valor da própria mercadoria. A forma das relações sociais materializadas específicas ao capitalismo aparece neste nível de análise como a oposição entre o dinheiro, a natureza abstracta, e a natureza “corpórea”.               

Um aspecto do fetiche, portanto, é o facto de as relações sociais capitalistas não aparecerem como tal e, para além disso, apresentarem-se antinomicamente, como oposição entre o abstracto e o concreto. Dado que, adicionalmente, ambos os lados da antinomia são objectivados, cada um deles parece ser quasi-natural. A dimensão abstracta aparece sob a forma de leis naturais abstractas, “objectivas” e universais; a dimensão concreta aparece como uma natureza puramente “corpórea”. A estrutura das relações sociais alienadas que caracterizam o capitalismo possui a forma de uma antinomia quasi-natural, na qual o social e o histórico não aparecem. A antinomia é recapitulada com a oposição entre as formas de pensamento positivistas e românticas. A maior parte das análises críticas do pensamento fetichizado tem-se concentrado naquela corrente [strand] da antinomia que hipostasia o abstracto como trans-histórico – o chamado pensamento positivo burguês – e, portanto, mascara o carácter social e histórico das relações existentes. Neste ensaio, vai ser realçada a outra corrente – aquela que inclui as formas de romantismo e revolta que, nos termos da sua auto-compreensão, são anti-burguesas, mas que na realidade hipostasiam o concreto e, portanto, permanecem reféns da antinomia produzida pelas relações sociais capitalistas.

As formas de pensamento anti-capitalista que continuam presas ao imediatismo [immediacy] desta antinomia tendem a perceber o capitalismo, e tudo aquilo que é específico a essa formação social, apenas em termos das manifestações da dimensão abstracta da antinomia; assim, por exemplo, o dinheiro é considerado a “raiz de todo o mal”. A existência da dimensão concreta é-lhe então positivamente oposta como o “natural” ou ontologicamente humano, que presumivelmente se situa para além da especificidade da sociedade capitalista. Deste modo, tal como sucede com Proudhon, por exemplo, o trabalho concreto é compreendido como um momento anti-capitalista por oposição à abstracção do dinheiro. O facto de o próprio trabalho concreto incorporar e ser materialmente formado pelas relações sociais capitalistas não é compreendido.

Com o desenvolvimento posterior do capitalismo, da forma capital e do fetiche que lhe está associado, a naturalização imanente ao fetiche da mercadoria adquire novas dimensões. A forma capital, tal como a forma mercadoria, é caracterizada pela relação antinómica entre o concreto e o abstracto, ambos aparecendo como algo de natural. A qualidade de “natural”, contudo, é diferente. Associada ao fetiche da mercadoria está a noção do carácter de legalidade [lawlike], em última análise, das relações entre unidades individuais autónomas [self-contained], tal como são expressas, por exemplo, pela economia política clássica ou pela teoria da lei natural. O capital, de acordo com Marx, é o valor que se auto-valoriza. É caracterizado por um processo contínuo, incessante, de auto-expansão do valor. Este processo submete-se a ciclos rápidos, em grande escala, de produção e consumo, criação e destruição. O capital não possui uma forma definitiva, mas aparece em diferentes etapas do seu percurso em espiral quer sob a forma de dinheiro, quer sob a forma de mercadorias. Enquanto valor que se auto-valoriza, o capital aparece como processo puro. A sua dimensão concreta muda em conformidade. Os trabalhos individuais já não constituem unidades independentes. Eles tornam-se cada vez mais componentes celulares de um enorme sistema dinâmico e complexo que engloba as pessoas e as máquinas e que está direccionado para um fim, nomeadamente, a produção pela produção. Esta totalidade social alienada torna-se maior do que a soma dos seus indivíduos constituintes e possui um fim externo a si mesma. Esse fim é um processo não finito. A forma capital das relações sociais tem um carácter cego, processual, quasi-orgânico.

Com a crescente consolidação da forma capital, a visão de mundo mecanicista dos séculos XVII e XVIII começa a ceder; um processo orgânico começa a suplantar a estase mecânica enquanto forma do fetiche. A teoria orgânica do Estado e a proliferação de teorias raciais e a ascensão do Darwinismo Social no final do século XIX são exemplos desta tendência. A sociedade e o processo histórico são cada vez mais compreendidos em termos biológicos. Não vou desenvolver mais este aspecto do fetiche do capital. Para o que nos interessa, o que deve ser notado são as implicações da maneira como o capital é apreendido. Como indicámos anteriormente, no nível lógico da análise da mercadoria, o “duplo carácter” permite à mercadoria aparecer como uma entidade puramente material e não como a objectivação de relações sociais mediadas. De um modo semelhante, permite ao trabalho concreto aparecer como um processo puramente criativo, material, separável das relações sociais capitalistas. No plano lógico do capital, o “duplo carácter” (processo de trabalho e processo de valorização) permite que a produção industrial apareça como um processo puramente criativo, material, separável do capital. A forma manifesta do concreto é agora mais orgânica. O capital industrial pode portanto aparecer como o descendente linear do trabalho artesanal “natural”, como estando “enraizado organicamente”, por oposição ao capital financeiro “desenraizado” e “parasitário”. A organização do primeiro aparece relacionada com aquela da guilda; o seu contexto social é apreendido como uma unidade orgânica superior [superordinate]: Comunidade [Gemeinschaft], Povo [Volk], Raça. O próprio capital – ou aquilo que é entendido como o aspecto negativo do capitalismo – é entendido apenas em termos da forma manifesta da sua dimensão abstracta: a finança e o capital que rende juros. Neste sentido, a interpretação biológica, que contrapõe a dimensão concreta (do capitalismo), como “natural” e “saudável”, à negatividade do que é assumido ser o “capitalismo”, não contradiz a glorificação do capital industrial e da tecnologia. Ambos constituem o lado “corpóreo” da antinomia.

Esta relação é normalmente mal compreendida. Norman Mailer, por exemplo, defendendo o neo-romantismo (e o sexismo) em O Prisioneiro do Sexo, escreve que Hitler falava de sangue, é certo, mas construiu a máquina. A questão é que, nesta forma de “anti-capitalismo” fetichizado, tanto o sangue como a máquina são vistos como os contra-princípios concretos do abstracto. A ênfase positiva na “natureza”, no sangue, no solo, no trabalho concreto e na Comunidade [Gemeinschaft], pode facilmente ser acompanhada por uma glorificação da tecnologia e do capital industrial. Esta forma de pensamento, portanto, não deve ser entendida como anacrónica, como a expressão de uma não-sincronismo histórico, da mesma maneira que a ascensão das teorias raciais no final do século XIX não deve ser encarada como atávica. Trata-se, historicamente, de novas formas de pensamento que não representam de modo algum a reemergência de uma forma mais antiga. É por causa da sua ênfase na natureza biológica que elas parecem ser atávicas ou anacrónicas. Todavia, esta ênfase está ela mesma enraizada no fetiche do capital. A viragem para a biologia e o desejo de um regresso às “origens naturais”, combinados com uma afirmação da tecnologia, que aparecem em muitas formas no início do século XX, devem ser entendidos como expressões do fetiche antinómico que dá origem à noção de que o concreto é “natural”, e que apresenta crescentemente o socialmente “natural” de tal maneira que é apreendido em termos biológicos.

A hipostasiação do concreto e a identificação do capital com o abstracto manifesto subjaz a uma forma de “anti-capitalismo” que procura superar a ordem social existente de um ponto de vista que, na verdade, permanece imanente a essa mesma ordem. Na medida em que esse ponto de vista é a dimensão concreta, esta ideologia tende a apontar para uma forma de síntese social capitalista aberta, mais concreta e organizada. Esta forma de “anti-capitalismo”, portanto, apenas parece ser um olhar saudosista em relação ao passado. Enquanto expressão do fetiche do capital, o seu verdadeiro impulso [thrust] é para a frente. Surge na transição do capitalismo liberal para o burocrático e torna-se virulenta numa situação de crise estrutural.

Esta forma de “anti-capitalismo”, então, é baseada num ataque unilateral ao abstracto. O abstracto e o concreto não são vistos como constituintes de uma antinomia em que a superação real do abstracto – da dimensão do valor – envolve a superação histórica da própria antinomia, assim como de cada um dos seus termos. Ao invés, existe um ataque unilateral à razão abstracta, ou, num outro nível, ao dinheiro e ao capital financeiro. Neste sentido, é complementarmente antinómica ao pensamento liberal, onde a dominação abstracta permanece incontestada e a distinção entre a razão crítica e positiva não é efectuada.

O ataque “anti-capitalista”, contudo, não permaneceu limitado a um ataque contra a abstracção. Ao nível do fetiche do capital, não é apenas o lado concreto da antinomia que pode ser naturalizado e biologizado. A dimensão abstracta manifesta foi igualmente biologizada – equiparada aos Judeus. A oposição fetichista entre o material concreto e o abstracto, entre o “natural” e o “artificial”, traduziu-se na oposição racial entre ao Arianos e os Judeus historicamente conhecida. O anti-semitismo moderno envolve a biologização do capitalismo – que apenas é entendido em termos da sua dimensão abstracta manifesta – enquanto Judaísmo Internacional.

De acordo com esta interpretação, os Judeus foram identificados não apenas com o dinheiro, com a esfera da circulação, mas com o próprio capitalismo. Todavia, em virtude da sua forma fetichizada, o capitalismo não parecia incluir a indústria e a tecnologia. O capitalismo aparecia apenas como a sua dimensão abstracta manifesta que, por sua vez, era responsável pelas vastas mudanças sociais e culturais concretas associadas ao rápido desenvolvimento do capitalismo industrial moderno. Os Judeus não eram encarados como meros representantes do capital (situação em que os ataques anti-semitas teriam sido muito mais específicos em termos de classe). Eles tornaram-se personificações do domínio intangível, destrutivo, imensamente poderoso e internacional do capital enquanto forma social alienada. Certas formas de descontentamento anti-capitalista foram direccionadas contra a dimensão abstracta manifesta do capital personificado na forma dos Judeus, não em virtude de os Judeus serem conscientemente identificados com a dimensão do valor, mas porque, dada a antinomia entre as dimensões abstracta e concreta, o capitalismo aparecia-lhes dessa maneira. A revolta “anti-capitalista” foi, consequentemente, também uma revolta contra os Judeus. A superação do capitalismo e dos seus efeitos sociais negativos foi associada à superação dos Judeus. 

Embora a ligação imanente entre o tipo de “anti-capitalismo” que caracterizou o nacional-socialismo e o anti-semitismo moderno tenha sido indicada, permanece a questão do porquê de a interpretação biológica da dimensão abstracta do capitalismo se ter centrado nos Judeus. Esta “escolha” não foi, no contexto Europeu, de modo algum fortuita. Os Judeus não poderiam ter sido substituídos por qualquer outro grupo. As razões para isso são múltiplas. A longa história de anti-semitismo na Europa e a respectiva associação dos Judeus ao dinheiro são bem conhecidas. O período de rápida expansão do capital industrial no último terço do século XIX coincidiu com a emancipação política e cívica [civil] dos Judeus na Europa central. Assistiu-se a uma verdadeira proliferação [explosion] dos Judeus nas universidades, nas profissões liberais, no jornalismo, nas artes, no comércio a retalho. Os Judeus tornaram-se rapidamente visíveis na sociedade civil, particularmente em esferas e profissões que estavam em plena expansão e eram associadas à nova forma que a sociedade estava a tomar. 

Poderiam ser mencionados muitos outros factores, mas há um que pretendo realçar. Tal como a mercadoria, entendida enquanto forma social, expressa o seu “duplo carácter” na oposição exteriorizada entre o abstracto (dinheiro) e o concreto (mercadoria), também a sociedade burguesa é caracterizada pela divisão entre Estado e sociedade civil. Para o indivíduo, essa divisão expressa-se como uma entre o indivíduo como cidadão e o indivíduo como pessoa. Como cidadão, o indivíduo é abstracto tal como é expresso, por exemplo, na noção de igualdade perante a lei (abstracta), ou no princípio de “uma pessoa, um voto”. Como pessoa, o indivíduo é concreto, inserido [embedded] em relações de classe reais que são consideradas “privadas”, isto é, pertencentes à sociedade civil e que não possuem qualquer expressão política. Na Europa, contudo, a noção da nação enquanto entidade puramente política, abstraída da substancialidade da sociedade civil, nunca foi plenamente realizada. A nação não era apenas uma entidade política, era igualmente concreta, determinada por uma língua, história, tradições e religião comuns. Neste sentido, o único grupo na Europa que cumpria a determinação da cidadania enquanto abstracção puramente política eram os Judeus, no seguimento da sua emancipação política. Eles eram cidadãos Alemães ou Franceses, mas não eram realmente Alemães ou Franceses. Eles pertenciam à nação abstractamente, mas raramente em concreto. Eles eram, para além disso, cidadãos da maioria dos países Europeus. A qualidade de abstracção, característica não apenas da dimensão do valor no seu imediatismo [immediacy], mas também, mediatamente, do Estado e lei burgueses, tornou-se intimamente associada aos Judeus. Num período em que o concreto era glorificado por oposição ao abstracto, contra o “capitalismo” e o Estado burguês, esta tornou-se uma associação fatal. Os Judeus eram desenraizados, internacionais e abstractos.

O anti-semitismo moderno, portanto, é uma forma de fetiche particularmente perniciosa. O seu poder e perigosidade resultam da sua visão de mundo abrangente que explica e dá forma a certos modos de descontentamento anti-capitalista de uma maneira que deixa o capitalismo incólume, ao atacar as personificações da forma social. O anti-semitismo, assim entendido, permite-nos apreender um momento essencial do Nazismo como um movimento anti-capitalista reduzido [foreshortened], um movimento caracterizado pelo ódio ao abstracto, pela hipostasiação do concreto existente e por uma missão resoluta [single-minded] e impiedosa, mas não necessariamente alimentada pelo ódio [hate-filled]: livrar o mundo da fonte de todo o mal.  

O extermínio dos Judeus Europeus é o sinal de que é demasiado simplista tratar o Nazismo como um movimento de massas com traços anti-capitalistas que deixaria cair essa pele, o mais tardar, em 1934 (“Röhm Putsch”) [NT2], uma vez servidos os seus propósitos e conquistado o poder Estatal. Em primeiro lugar, as formas ideológicas de pensamento não são simples manipulações conscientes. Em segundo lugar, esta visão não compreende a natureza do “anti-capitalismo” Nazi – o grau [extent] em que estava intrinsecamente ligado à visão de mundo anti-semita. Auschwitz ilustra essa ligação. É verdade que o “anti-capitalismo” demasiadamente concreto e plebeu das SA [NT3] foi eliminado em 1934; o mesmo não sucedeu, contudo, com o impulso anti-semita – o “conhecimento” de que a fonte de todo o mal era o abstracto, o Judeu.

Uma fábrica capitalista é o local onde é produzido o valor, algo que “infelizmente” tem de assumir a forma de uma produção de bens, de valores de uso. O concreto é produzido enquanto suporte necessário do abstracto. Os campos de extermínio não eram uma versão terrível dessa fábrica, mas, ao invés, devem ser vistos como a sua negação grotesca, Ariana, “anti-capitalista”. Auschwitz era uma fábrica para “destruir o valor”, isto é, para destruir as personificações do abstracto. A sua organização correspondia a um processo industrial demoníaco [fiendish], cujo objectivo era “libertar” o concreto do abstracto. O primeiro passo consistiu em desumanizar, ou seja, arrancar a “máscara” de humanidade, de especificidade qualitativa, e revelar os Judeus como aquilo que “realmente são” – sombras, cifras, abstracções numéricas. O segundo passo consistiu em erradicar essa abstracção, transformá-la em cinzas, procurando durante o processo despojá-la dos traços remanescentes do “valor de uso” material concreto: roupas, ouro, cabelo, sabão.

Auschwitz, e não a conquista do poder pelos Nazis em 1933, foi a verdadeira “Revolução Alemã”, a tentativa de “derrubar”, não apenas a ordem política, mas a formação social existente. Através desse empreendimento o mundo ficaria a salvo da tirania do abstracto. Durante este processo, os Nazis “libertaram-se” da humanidade.

Os Nazis perderam a guerra contra a União Soviética, EUA e Grã-Bretanha. Eles ganharam a sua guerra, a sua “revolução”, contra os Judeus Europeus. Eles foram bem sucedidos não apenas no assassinato de seis milhões de crianças, mulheres e homens judeus. Eles foram bem sucedidos na destruição de uma cultura – uma cultura bastante antiga – a do Judaísmo Europeu. Era uma cultura caracterizada por uma tradição que incorporava uma tensão complicada entre particularidade e universalidade. Esta tensão interna era duplicada numa tensão externa, que caracterizava a relação dos Judeus com o ambiente Cristão circundante. Os Judeus nunca formaram uma parte completamente integrante das sociedades em que viviam, nem viveram nunca completamente aparte dessas sociedades. Os resultados desta situação foram frequentemente desastrosos para os Judeus. Por vezes revelaram-se frutuosos. Este campo de tensão sedimentou-se na maior parte dos indivíduos Judeus após a sua emancipação. A derradeira resolução desta tensão entre particular e universal é, na tradição Judaica, uma função do tempo, da história – da vinda do Messias. Talvez, contudo, em face da secularização e assimilação, os Judeus Europeus tivessem ultrapassado [given up] essa tensão. Talvez a sua cultura tivesse desaparecido gradualmente enquanto tradição viva, antes de uma resolução entre particular e universal ser alcançada. Esta questão nunca será respondida.       
                      

Notas

[NT1] – “John Bull” – personificação nacional da Grã-Bretanha criada originalmente por John Arbuthnot

[NT2] – “Röhm Putsch” – Também conhecido por “Noite das Facas Longas” ou “Noite dos Longos Punhais”, foi uma purga que aconteceu na Alemanha, na noite do dia 30 de Junho para o dia 1 de Julho de 1934, quando o Partido Nazi decidiu executar dezenas dos seus membros, a maioria dos quais pertencentes à chamada “Sturmabteilung” (SA), uma facção paramilitar liderada por Ernst Röhm. A ocasião foi também aproveitada para perseguir comunistas e sociais-democratas, assim como conservadores olhados com desconfiança.

[NT3] – Vide Nota do Tradutor nº 2.

[*] Texto original: Postone, Moishe (1986), “Anti-Semitism and National Socialism”, in A. Rabinbach & J. Zipes (eds.), Germans and Jews since the Holocaust. New York: Holmes and Meier, pp. 302-314. O original em inglês é uma versão revista de: Postone, Moishe (1982), “Die Logik des Antisemitismus”, in Merkur, No.1.
Tradução: Nuno Miguel Cardoso Machado (nuno.cocas.machado@gmail.com), Bolseiro de Investigação no SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações, Lisboa. Setembro/2011
           
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